10/08/2015

Baleia

Há uma baleia na sala cada vez que os nossos corpos se encontram. Cada vez que nos sentamos muito direitos nas cadeiras para tomar chá e beber elogios, é ela que preenche o espaço entre o meu sangue e o teu.
Já te perguntaste de onde vem esse aperto no assento, essa falta de posição? Pois é da baleia, que pousa a barbatana caudal mesmo no topo do teu cabelo, tão embelezado para a ocasião. É ela que te pesa a espinha e faz permanecer sentado durante todas as horas em que divaga o meu discurso.
Eu levo iscos, lanço redes, até com o próprio corpo já a tentei afastar, mas uma coisa é certa: uma baleia só se move quando entende que se deve mover. E esta não arreda pé do tampo da nossa mesa, sempre que te vê chegar.
Ela não está apaixonada, nem se encantou pela tua voz, mas eu vejo-a crescer e ocupar mais espaço na sala por cada vez que me fixas ou ris sem eu o esperar. O teu riso, aliás, deve ser o alimento preferido do animal, pois ele engole-o e logo incha, brilhante e saciado. É nesses momentos que eu tremo, não sei se pela beleza da gargalhada, se pela improbabilidade de tal bicho à hora do lanche, ou se por ambas as possibilidades.
A baleia olha-me nos olhos e não me deixa ignorá-la um único segundo. Sem abrir a boca, ela despeja sobre o meu prato lembretes infinitos de constrangimento e culpa, ao mesmo tempo que se ajeita melhor no espaço, procurando dificultar-me qualquer vislumbre feliz do encontro, como os múltiplos brilhos que povoam os teus olhos e o caminho dos teus dentes.
Já alguém te falou de como brilham os teus dentes, na luz das cinco da tarde? O meu pensamento adoça-se com essa recordação... Mas só a platónica hipótese de desvendar tal mistério na tua boca faz o gigante dos mares querer sair do abrigo.
Amanhã virás, pousarás as mãos no colo e permanecerás sentado, torto e incomodado como todas as tardes, porque uma baleia se instala no lugar entre nós. Assim será, e eu continuarei a não me importar com o cheiro a peixe que se entranha, cada vez mais, nos fios do teu cabelo.
Sonho com o dia em que a imensidão de brilhos do teu sorriso seja capaz de encandear este incrível intruso e, entre um golo de chá e outro, afujentá-lo para sempre.

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