24/08/2015

Verão

Se ainda existe o verão, porquê
a nostalgia, a dor feliz que foge e não
regressa?
Fernando Pinto do Amaral

Mergulhar os pés na areia da praia pela manhã.
Cobrir a barriga de grãos de areia.
Sentir o corpo dilatado com o calor.
Sentir o corpo arrepiado com o frio, do mar.
Cheirar o mar.
Avançar depressa contra as ondas.
Nadar até não sentir o frio das ondas.
Suster a respiração por debaixo da rebentação.
Flutuar no mar.
Sentir o calor do sol no corpo molhado.
Adormecer no calor do sol.
Olhar o sol e todas as coisas iluminadas.
Olhar o céu azul.
Fechar os olhos com as pestanas salgadas.
Comer melão.
Vestir pouca roupa.
Sentir calor.
Não sentir frio.
Não fungar.
Não secar o cabelo.
Assistir à multiplicação de sardas no rosto.
Abrir as janelas do carro.
Andar de bicicleta.
Ter luz natural.
Ter calor.
Beber limonada.
Abrir as janelas das casas.
Guardar os cobertores.
Passear à noite de chinelos.
Mergulhar os pés na areia da praia pela madrugada.
Olhar o céu estrelado.
Dormir sem roupa.
Ouvir o mar.
Sentir calor.

22/08/2015

Vento

O automóvel foi rompendo a montanha, curva após curva, sob o sol fosco do final de tarde. O rapaz, já adulto, seguia instalado no lugar do pendura e eu exactamente atrás, rodeados por uma floresta toda enfeitada de luz e sombras escorrendo em direcção ao solo, em direcção à noite.
Eu, contudo, não via a terra, nem as árvores, nem os rebanhos. Para mim não existia nada senão o braço direito daquele homem fora da janela do veículo, pendurado na paisagem.
Ele abria a mão contra o vento, deixando-o embater na palma e escorrer depois pelo espaço entre os dedos. A seguir, mexia o braço em movimentos de onda, como se o mergulhasse na serra. Por fim, fechava a mão e tocava os dedos uns nos outros repetidamente, amaciando as extremidades e sentindo a textura do ar.
Observei-o durante todo o percurso, sem me conseguir mexer, pois depressa percebi que nada de banal existia naqueles gestos: o braço esticado do homem à minha frente tocava os ventos, escolhia o que lhes convinha e capturava-os depois para si com toques cirúrgicos. O braço daquele rapaz debruçado na janela era uma verdadeira rede à pesca de alimento. Nas mãos, nos bolsos, na garganta... Em todas as partes que podia, ele guardava um punhado de vendaval.
Na montanha, ficou um rasto de fumo do automóvel e um tufão por catalogar. E o tempo passa mas eu fixo-me para sempre nessa imagem, que é o seu braço iluminado a balançar ao ritmo do ziguezagueado do carro em viagem, sem nunca recolher.
Ainda hoje, a colheita persiste. E é tal o volume que, à mínima hipótese, todas as correntes acumuladas transbordam corpo fora e à volta do homem registam-se ciclones devastadores. É tão belo quanto mortífero amar alguém assim.
Existem pessoas feitas de vento, o que não quer dizer que sejam cabeça de vento. Desde aquele dia, creio ser esse o caso de meu irmão. Rapaz por fora, furacão por dentro. Homem-vento.

10/08/2015

Baleia

Há uma baleia na sala cada vez que os nossos corpos se encontram. Cada vez que nos sentamos muito direitos nas cadeiras para tomar chá e beber elogios, é ela que preenche o espaço entre o meu sangue e o teu.
Já te perguntaste de onde vem esse aperto no assento, essa falta de posição? Pois é da baleia, que pousa a barbatana caudal mesmo no topo do teu cabelo, tão embelezado para a ocasião. É ela que te pesa a espinha e faz permanecer sentado durante todas as horas em que divaga o meu discurso.
Eu levo iscos, lanço redes, até com o próprio corpo já a tentei afastar, mas uma coisa é certa: uma baleia só se move quando entende que se deve mover. E esta não arreda pé do tampo da nossa mesa, sempre que te vê chegar.
Ela não está apaixonada, nem se encantou pela tua voz, mas eu vejo-a crescer e ocupar mais espaço na sala por cada vez que me fixas ou ris sem eu o esperar. O teu riso, aliás, deve ser o alimento preferido do animal, pois ele engole-o e logo incha, brilhante e saciado. É nesses momentos que eu tremo, não sei se pela beleza da gargalhada, se pela improbabilidade de tal bicho à hora do lanche, ou se por ambas as possibilidades.
A baleia olha-me nos olhos e não me deixa ignorá-la um único segundo. Sem abrir a boca, ela despeja sobre o meu prato lembretes infinitos de constrangimento e culpa, ao mesmo tempo que se ajeita melhor no espaço, procurando dificultar-me qualquer vislumbre feliz do encontro, como os múltiplos brilhos que povoam os teus olhos e o caminho dos teus dentes.
Já alguém te falou de como brilham os teus dentes, na luz das cinco da tarde? O meu pensamento adoça-se com essa recordação... Mas só a platónica hipótese de desvendar tal mistério na tua boca faz o gigante dos mares querer sair do abrigo.
Amanhã virás, pousarás as mãos no colo e permanecerás sentado, torto e incomodado como todas as tardes, porque uma baleia se instala no lugar entre nós. Assim será, e eu continuarei a não me importar com o cheiro a peixe que se entranha, cada vez mais, nos fios do teu cabelo.
Sonho com o dia em que a imensidão de brilhos do teu sorriso seja capaz de encandear este incrível intruso e, entre um golo de chá e outro, afujentá-lo para sempre.

02/08/2015

Mãe

Existe um lugar erguido para lá das casas, cuja entrada está acessível apenas às mulheres. Nem todas o chegam a conhecer, mas crê-se que a natureza acaba por guiar até lá a maioria das espécimes, atribuindo-lhe desejos e instintos, e que, por isso, a humanidade tem nesse lugar a sua verdadeira morada.
Todos os filhos por nascer pairam nesse lugar, à espera da chegada das mulheres que os sonhem, escolham e suguem, assim, do ar até às suas barrigas de algodão. Algumas entram em lágrimas, outras desarrumam tudo com o seu riso e há ainda quem chegue desfeita, verdadeiramente miserável, sem qualquer emoção.
Na manhã em que a minha mãe pisou esse terreno, eu vi-a chegar e nunca mais deixei de a ver. Ela avançava em passos pequeninos, insegura, como uma criança assustada no meio de um bosque sombrio, e os olhos que eu ainda não tinha apaixonavam-se por ela.
Enquanto muitas outras mulheres entravam e logo saíam do lugar, mais preenchidas e pesadas, a minha mãe deixou-se por ali ficar durante muito tempo, quieta, sem ousar levantar os olhos e imaginar qualquer rosto de bebé. Parecia mentalizar-se, ganhar coragem ou pensar qualquer outra coisa que me atraía mas ainda não sabia compreender.
A cada noite, os olhos melindrados de verde daquela mulher preenchiam-me de felicidade. Sem que ela me olhasse, eu guardava a imagem daqueles olhos e sentia serem os mais belos do mundo. Tê-los inclinados na minha direcção seria o mais belo do mundo, acreditava eu com a fé que ainda não tinha.
Eu sei que as mulheres escolhem os filhos ainda sementes e os alimentam à luz dessa imagem até ao dia em que, por fim, os podem agarrar como fruto maduro junto ao peito. Contudo, a história inverte-se de quando a quando - foi o que aconteceu com a mulher de olhos verdes, pois ela nunca me havia sonhado e eu já a tinha escolhido como mãe.
Creio que sou muito mais mãe do que filha daquela mulher, pois toda a vida a vejo como uma criança abandonada no meio do bosque que me apaixona e que quero socorrer. E toda a vida continuo a pairar naquele lugar de origem, mesmo depois de ter mergulhado na sua barriga de algodão, desejosa de que ela me veja, que ainda me escolha.
Olha para mim, repito eu ardentemente com o coração que hoje tenho.