22/08/2015

Vento

O automóvel foi rompendo a montanha, curva após curva, sob o sol fosco do final de tarde. O rapaz, já adulto, seguia instalado no lugar do pendura e eu exactamente atrás, rodeados por uma floresta toda enfeitada de luz e sombras escorrendo em direcção ao solo, em direcção à noite.
Eu, contudo, não via a terra, nem as árvores, nem os rebanhos. Para mim não existia nada senão o braço direito daquele homem fora da janela do veículo, pendurado na paisagem.
Ele abria a mão contra o vento, deixando-o embater na palma e escorrer depois pelo espaço entre os dedos. A seguir, mexia o braço em movimentos de onda, como se o mergulhasse na serra. Por fim, fechava a mão e tocava os dedos uns nos outros repetidamente, amaciando as extremidades e sentindo a textura do ar.
Observei-o durante todo o percurso, sem me conseguir mexer, pois depressa percebi que nada de banal existia naqueles gestos: o braço esticado do homem à minha frente tocava os ventos, escolhia o que lhes convinha e capturava-os depois para si com toques cirúrgicos. O braço daquele rapaz debruçado na janela era uma verdadeira rede à pesca de alimento. Nas mãos, nos bolsos, na garganta... Em todas as partes que podia, ele guardava um punhado de vendaval.
Na montanha, ficou um rasto de fumo do automóvel e um tufão por catalogar. E o tempo passa mas eu fixo-me para sempre nessa imagem, que é o seu braço iluminado a balançar ao ritmo do ziguezagueado do carro em viagem, sem nunca recolher.
Ainda hoje, a colheita persiste. E é tal o volume que, à mínima hipótese, todas as correntes acumuladas transbordam corpo fora e à volta do homem registam-se ciclones devastadores. É tão belo quanto mortífero amar alguém assim.
Existem pessoas feitas de vento, o que não quer dizer que sejam cabeça de vento. Desde aquele dia, creio ser esse o caso de meu irmão. Rapaz por fora, furacão por dentro. Homem-vento.

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