20/07/2015

Sal

Costumava pensar nas ondas como aglomerados de sal em oscilação pelo mundo, temperando as terras, os céus, os bichos. Cada homem à beira-mar era um isco insosso à mercê dessa avalanche de sal capaz de corroer e exaltar os pés pela calada, da unha à canela.
Os peixes abriam a boca numa língua indecifrável e, ao falar, bebiam desse minério essencial ao enérgico movimento de barbatanas, sabendo bem que não matavam a sede. O mesmo se passava com as baleias, as algas, as estrelas... Tudo o que vivia envolto por aquela massa de sal, dela comendo e respirando, se tornava mais picante e veloz a cada trago, pois nada de água ali existia.
No ar, o oxigénio em voo raso sobre as ondas também se deixava consumir pelas partículas de sal menos densas, tornando-se intragável ao paladar doce das crianças. Mas quem o inalasse veria todas as possibilidades de impureza ou entulho desfeitas num ápice, no caminho entre as narinas e a laringe, e não havia assim maldade que o mar não soubesse sarar.
No cais de minha casa, junto ao lume, todas as noites eu vertia no tacho água da torneira, mais azeite, mais uma porção de flor de sal. A seguir, mexia tudo com uma colher de madeira e não parava de o fazer, acreditando no poder daquelas ondas, circunscritas ao curto perímetro do alumínio a escaldar.
A minha mãe sempre se aproximava, roubando-me a colher, levando-a aos beiços e dizendo: mais sal, filhinha. Então, eu afundava todo o comprimento dos dedos no aglomerado de pedras esbranquiçadas depositado no pote e sentia-me isco insosso à mercê de uma avalanche capaz de corroer e exaltar as mãos pela calada, da unha ao extremo do pulso. E derramava mais um punhado no caldo, fazendo nascer um oceano revolto e perfumado, como se à minha própria vida acrescentasse sabor.

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