14/09/2015

Labirinto

Do alpendre da minha casa de campo eu alcanço um mar de floresta. Apesar de distante dos verdadeiros mares que povoam o mundo, é em tudo igual a eles. Tão densa e selvagem como qualquer um deles.
A casa está erguida numa encosta da montanha, entre os bichos e a vegetação, de tal modo que mais parece uma toca, um esconderijo camuflado no meio do arvoredo.
Imagino a minha casa como uma espécie nova de arvoredo. Rompe sem ordem do chão, todas as janelas procuram sugar a maior quantidade de luz natural possível e as raízes alastram pelos terrenos vizinhos persistindo na dominância. Como animais numa árvore, aqui comemos, dormimos e nos escondemos do medo. Eu e a minha família de camponeses, para quem o mundo é o mar de floresta que alcanço do alpendre.
Todas as manhãs, a minha família de resineiros bate com a porta de casa e mergulha nesse mar. Vão carregados com púcaros e ferramentas, que nem escafandros exploradores, numa fila indiana constituída por trisavós, bisavós, avós e tios. Evito olhar com atenção para não ver os meus pais, mas também lá vão, talvez até os meus irmãos e meus filhos. Toda a minha gente de sangue sai descalça do ninho e entra na floresta, contornando os silvados, medindo o cheiro aos pinheiros, até se deparar com o rio de resina que pinga brilhante dentro dos campos.
Noutras paragens, lá longe, há gente que entre nos mares como os meus entram nas matas. Do alpendre da minha casa de campo, imagino este labirinto de ramagens e silvas da mesma forma que adivinho o labirinto de ondas e vendavais a existir nesses lugares. Ambos igualmente densos e selvagens.
Todas as tardes, a minha fila de gente pobre regressa a casa e há alguém que não volta. Os homens comandam o grupo, carregando à cabeça os cântaros, por onde escorre a resina direita às mãos e aos cabelos; as mulheres seguem logo depois. Estas tentarão noite fora raspar as réstias de cola que se agarrou ao corpo, mesmo sabendo que um homem se perdeu para sempre dentro do matagal. E que, em breve, chegará também a sua vez.
O meu coração inquieta-se todos os dias no forte deste alpendre. Hoje, que já todos os resineiros da minha família se perderam na floresta, imagino a minha casa de campo, árvore por catalogar, como um farol rochoso plantado à beira-mar.
A porta não bate, as vozes não se ouvem, a fila não segue. Mesmo assim, alcanço o mar de floresta à minha frente e, enquanto há sol, não deixo de esperar por um sinal dos naufragados.
Por estes dias, se cerrar os olhos, vejo ondas, um labirinto feito de espuma e embarcações à deriva. Não há potes nem geringonças, mas os escafandros atirados à morte avistam-se logo a seguir.

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