23/10/2016

Amor

Quero falar-te de amor.
Essa coisa que me leva a inventar de rezar, dirigindo todos os dias novos versos aos passarinhos, como intermediários das palavras que não te posso oferecer.
Digo-lhes: dêem-lhe asas. E é como se te dissesse: não me deixes aprender a viver mais sem ti.
Abro os braços, deixo-te ir e também nisso existe amor. Já não me ouves em lugar algum, pois agora mordo as mãos na hora de implorar para que fiques comigo.
Na verdade, mordo tudo quanto posso. O asfalto, as sombras, todos os homens com que me cruzo. Pois desaprendi a entalar a língua no riso dos meus dentes, esse gesto simples que indiciava a mais genuína felicidade.
Se te falo do meu corpo no abismo, quero mutilar-te na mesma hora. Culpo-te e também nisso reside uma declaração de amor profundo. Entende que se te mato a cada dia é porque insistes em não morrer. Em todo o lado persistem os esboços do meu rosto criados pela tua mão e então eu lembro a tua incrível mão assentindo sempre ao meu pedido: oferece-me mais um retrato. A tua belíssima mão escrevendo por toda a parte: dá-me beijos e amor.
Quando penso em ti, eu esqueço o choro das crianças e a fome das mães das crianças.
Pareces-te muito com a cura do mal e, ainda assim, com uma praga que consome toda a minha alegria. Que deforma os meus membros à semelhança dos teus para que nada mais encaixe ali.
O inverno vem chegando e eu persisto imóvel, em bicos de pés sobre os rochedos, pronta para te abraçar. Hei-de gelar desse jeito.
Sim, sobreviver é possível. Existem tantos corpos, tantos destinos, tantas novas línguas para provar. Contudo, temo que ninguém fale essa, a mais feliz, sempre mordida entre os dentes.
Desejava que me conhecesses de novo, estendida sobre o parapeito da janela, junto ao céu. Semelhante ao primeiro dia, mas agora amadurecida, como o fruto pesando brilhante e firme junto ao ninho dos passarinhos.
No final da viagem, sei que regressaremos ao consolo da nossa casa, em silêncio, na cidade. Então peço: vem falar-me de amor. Tu ainda guardas a promessa do meu exílio, também eu guardo a certeza do teu.
O pássaro levanta voo e eu mordo as minhas mãos. Espero que, um dia, o escutes no teu lugar.